O PERCURSO DA HISTÓRIA DO ENSINO DE HISTÓRIA COMO DISCIPLINA NO BRASIL

Virgínia Torres Cavalcante Sales, Mestranda ProfHistória pela Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA), Professora da educação básica, E-mail: virginiatorres@gmail.com
Silvio Henrique Ferreira Vilhena, Mestrando ProfHistória pela Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA), Professor da educação básica, E-mail: silvio.henrique@unifesspa.edu.br
Carlo Guimarães Monti, Doutor em História, Professor FAHIST/ICH, Profhistoria UNIFESSPA, E-mail: carlogmonti@gmail.com

Ao se pensar e investigar sobre o papel do historiador é imprescindível que se atenha aos reflexos e resultados dos seus trabalhos, segundo Antoine Prost “Não existem fatos, nem história, sem um questionamento; neste caso, na construção da história, as questões ocupam uma posição decisiva”. (PROST, 1933, p. 75). As construções das narrativas históricas devem ser fundamentadas por um questionamento, uma problematização, um olhar que pode partir de variadas perspectivas sempre relacionadas a um espaço e a uma temporalidade. Essa questão levantada pelo historiador é fundamental para direcionar a pesquisa e delimitar o seu objeto de estudo perante o olhar a determinadas fontes, que permitem novas concepções sobre determinados objetos,

Sempre que formula uma questão, o historiador já tem em mente uma ideia preliminar, cuja verificação pode ser tentada a partir do documento que ele será capaz de utilizar [...]. Na ciência, a formulação de questões para as quais não existem meios de fornecer uma resposta é o pecado fundamental, a exemplo do que ocorre na vida política quando são dadas ordens que, segundo se presume, não serão cumpridas. (COLLINGWOOD, 1946, p. 281).

Assim, a pesquisa de um historiador não surge por um acaso, ele sempre tem um pré-conhecimento de que fonte poderá usar, que documentos explorar, quais procedimentos irá adotar e principalmente as questões que devem permear sua pesquisa, “[...] as fontes só existem como tais ao serem consideradas por alguém do ponto de vista histórico”, (COLLINGWOOD, 1935, p. 19) e esse alguém, para Prost, deve ser o historiador.

Diante desse cenário surge outra questão da legitimidade, o que deve ser considerado realmente importante para a história? Quais atores, sujeitos, devem ser abordados? De que forma? São questões discutidas e analisadas pelos historiadores em diversos tempos e espaços, pensadas em perspectivas diferentes. Daí vem o distanciamento e a falta de ampliação de debates sobre o conhecimento historiográfico local. A regionalização da história como forma de construção de memória e identidades.

“A História Regional e Local permite a inserção e o relacionamento do aluno na comunidade da qual faz parte, favorecendo a criação de sua própria historicidade e identidade.” (SCHMIDT; CAINELLI, 2009, p. 139). Em muitas sociedades é essa ausência que é percebida nos currículos, nos debates e nos processos de ensino no ambiente escolar, que consequentemente refletem por longos tempos nas comunidades locais. A falta de reconhecimento e identificação com o local de vivência também pode ser uma das consequências do desconhecimento histórico.

A perspectiva de ressignificação do ensino de História no espaço da escola, seja pelo enfoque na história local e regional seja pelas diversas vertentes de discussões em torno da ruptura com os modelos de ensino tradicionais, é resultado de pesquisas voltadas para história do ensino de História desenvolvidas a partir da década de 1980, em razão da ampliação dos cursos de pós-graduação das universidades brasileiras, que alcançaram seu auge nos anos 1990 e 2000. Dentro dessa ótica, os anos de transição do Regime Militar para a redemocratização ficaram marcados pela retomada de estudos que procuraram discutir as problemáticas em torno do ensino de História e das reformas curriculares que ocorriam em vários estados do país. (BITTENCOURT, 2011).

Essas discussões procuraram contemplar a trajetória e consolidação do ensino de História, desde a criação da disciplina, no sentido de buscar compreender também a História escolar no Brasil e suas reformulações com o passar dos anos e dos cenários políticos. “O ensino da História, incluindo as análises sob perspectivas históricas, passou a fazer parte das pesquisas criadas em meio aos debates sobre as reformas curriculares que, então, ocorriam em vários estados do país”. (BITTENCOURT, 2011, p. 85)

Em artigo de 2011, Circe Bittencourt fez um balanço da produção a partir da década de 1980, selecionando em torno de 110 publicações de teses e dissertações, produzidas entre 1988 e 2009, que tratam de reformulações curriculares, no ensino de História. Seu objetivo foi discutir as problemáticas que acompanharam a trajetória de produção desses trabalhos e como a história do ensino de História é entendido como tema base para os debates relacionados às reformulações curriculares para a História como disciplina escolar. A fim de apresentar a evolução dos estudos sobre o tema, a autora criou dois momentos de análise para as produções, de 1988 a 1996 ainda com um número limitado de trabalhos, e de 1997 a 2009 quando do crescimento e consolidação do tema (BITTENCOURT, 2011).

As pesquisas procuraram problematizar a história tradicional (termo que surgiu como denominação para história escolar hegemônica) e como seus conteúdos e métodos criaram subsídios para a formação de uma identidade nacional destinada à instrução das elites. Princípios como a relação entre História escolar, ideologia e a História como criadora da genealogia da nação, de Marc Ferro e François Furet respectivamente, formaram o embasamento teórico que mais influenciou os estudos de história do ensino de História entre os anos 1988 e 1996. Aspectos como as produções historiográficas, a produção escolar, as políticas públicas educacionais e a elaboração dos programas curriculares integram o leque de discussões abordadas por essas pesquisas.

Já as dissertações e teses que compuseram a segunda fase do recorte ficaram inseridas no contexto de expansão da historiografia sociocultural e dos cursos de pós-graduação e da criação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 1996, compondo um cenário de ampliação das discussões sobre a história do ensino de História e um aumento significativo de trabalhos sobre o tema.

Os conceitos de disciplina escolar e de cultura escolar tiveram nesse momento a função de “suporte analítico para situar a persistência de determinados conteúdos e, sobretudo, a manutenção de uma história eurocêntrica que impedia a inclusão de novos sujeitos ou mesmo regiões no ensino de História” (BITTENCOURT, 2011). Por isso, ressalta-se a importância do estudo da história como disciplina em momentos de mudanças e permanências seja por interesses políticos ou pedagógicos, demonstrando a abrangência do tema em destaque.

Além disso, problematizar as permanências da história tradicional, as pesquisas procuraram avaliar as diversas reformas curriculares como instrumentos de conflitos e disputas que acabaram por criar conhecimentos hoje questionados. Os avanços alcançados por essas discussões favorecem os debates da atualidade sobre os entraves “na constituição de uma história nacional que se renova” e nos “compromissos com a constituição de identidades plurais e significativas para o conjunto da sociedade”. (BITTENCOURT, 2011).

O presente texto é parte de um capítulo do e-book que está sendo organizado pelo Prof. Dr. Carlo Monti junto discentes do ProfHistoria UNIFESSPA/Xinguara.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Abordagens históricas sobre a história escolar. Educação & Realidade, v. 36, n. 1, 2011.

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. LDB: Lei das Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, DF, 1996. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ldb.pdf> Acesso em: 04 ago. 2020.

COLLINGWOOD, R.G. The Idea of History. Oxford: Clarendon Press, 1946.

COLLINGWOOD, R.G. The Historical Imagination. An Inaugural Lecture Delivered before the University o f Oxford on 28 october 1935. Oxford: Clarendon Press, 1935.

PROST, Antoine. Capítulo I, II e IV. Doze lições sobre a história; [tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira]. — Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008. p. 75-93.

SCHMIDT, M. A; CAINELLI, M. Cognição histórica situada: que aprendizagem histórica é esta? Aprender história: perspectivas da educação histórica. Ijuí: Ed. Unijuí, 2009.

Comentários

  1. Belíssimo Trabalho! Gostaria de compreender a partir do texto de vocês como a cultura escolar pode auxiliar nesse balanço historiográfico sobre a história do Ensino de História?
    Alisson Lião dos Santos Soares

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    1. Agradecemos Alisson. O texto discorre sobre o percurso do ensino de história. Tal trajetória sempre está relacionada diretamente a cultura escolar. Dessa forma, buscamos correlacionar a história do ensino de história com essa prática.

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  2. Excelente produção Virginia e Silvio.
    Segundo os PCN, a função da História seria possibilitar o entendimento dos problemas atuais, basicamente aqueles que impedem a constituição da cidadania. O aluno, como cidadão, partícipe e construtor de sua própria história, deve entender esses problemas e o recurso metodológico para esse entendimento deve ser o estudo de temas elucidativos, estabelecidos a partir da pesquisa e da leitura crítica de fontes e bibliografia. A partir dos escritos de vocês, prática e analise profissional a cerca da história do ensino de história, o currículo da disciplina ao longo de sua construção, tem possibilitado esse desenvolvimento, a nível de educação básica, em seus discentes? As escolas públicas possuem condições estruturais "vivas e não utópicas ou documentais" para fornecer e construir essa visão critica? (Sebastiana Valéria dos Santos Moraes)

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    1. Agradecemos Valéria. Infelizmente, através desse estudo da história do ensino de história, observa-se que apesar dos avanços do ensino de história nesse sentido, ainda há, de forma geral, uma imensa distância desse propósito de cidadania. O próprio espaço escolar nem sempre favorece essa criticidade, principalmente os públicos. Que quase sempre são espaços de interesses políticos, e, as vezes, até tornam-se "propriedades".

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  3. Parabéns pelo texto...
    Gostaria de perguntar em que se diferenciaria a reflexão proposta daquelas realizadas por Circe Bittencourt e Nívia Fonseca, por exemplo, quando elas mapearam, analisaram e publicaram a história do ensino de história no Brasil? Teria como foco as singularidades do ensino de história no estado do Pará? Ou trata-se de uma revisão bibliográfica?

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    1. O texto é uma revisão bibliográfica, em partes, discutindo o papel do historiador, a história do ensino de História e a contribuição das pesquisas em torno dela como valioso instrumento de reflexão para se pensar em mudanças para o ensino de História como um todo, valendo-se sim dos trabalhos de Circe Bittencour e Thaís Fonseca. Mas trará também uma discussão até o momento pouco abordada pela literatura que é a proposta de uso de fontes históricas em sala de aula à luz da Base Nacional Comum Curricular. Este, por ser um documento de publicação um tanto recente, ainda carece de produções acadêmicas que venham a contemplar a abordagem do tema a partir da Base. Entendemos que o texto, que teve parte dele aqui comunicado, contempla de forma mais completa a história do ensino de História, uma vez que debate entre autores já consagrados no tema, e ainda flerta com temáticas atualíssimas e necessárias como a História e o uso de fontes na BNCC.

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  4. Parabenizo os autores por seu trabalho e temática.
    Ao abordar a trajetória do ensino de História, compreendo que existiram importantes mudanças e permanências. No que tange o cenário político, qual seria a mudança mais expressiva analisada no artigo para o ensino de História?
    Aline Barros.

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    1. Agradecemos Aline. Uma das principais mudanças foi a ressignificação do ensino de história durante a transição do regime militar para a redemocratização. Seja através da ampliação de cursos de pós-graduação, seja através de reformas curriculares e principalmente da oportunidade de debates concernentes a esse ensino.

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  5. No campo do ensino de história acredita-se que contemplar a história regional e local pode ser um caminho para que o aluno se aproxime de elementos fundantes de sua identidade, muitas vezes sufocados por visões ideológicas hegemônicas social e didaticamente. Como o diálogo da História com outras disciplinas e/ou áreas do conhecimento poderia contribuir nestas perspectiva?

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    1. A questão da identidade principia na construção das memórias individuais e coletivas, que realmente estão sujeitas a manipulações. Porém, a interdisciplinaridade entre história, geografia, filosofia e sociologia por exemplo, podem facilitar não só uma análise mais criteriosa dos documentos, como também das ideologias que envolveram e influenciaram essas construções dentro dos contextos sociais, temporais e espaciais.

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  6. Boa tarde!
    Os "instrumentos de conflitos e disputas que acabaram por criar conhecimentos hoje questionados" devem ser debatidos na disciplina de História nas escolas (nível médio e fundamental" ou devem ser feitas em um contexto interdisciplinar mais amplo e crítico?
    Helena Maria Lopes dos Santos

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    1. Olá! A disciplina história é fundamental para esses debates. O ensino de história na educação básica é pilar para esse conhecimento. Assim, contribui diretamente para o embasamento de um debate que deve sim, ser ampliado e compartilhado em um contexto mais expandido.

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