O ENSINO DE HISTÓRIA DOS TRAUMAS COLETIVOS NO SUL DO PARÁ

Alisson Lião
Mestrando Profhistoria – UNIFESSPA
Prof. Orientador Dr. Bruno Silva
UNIFESSPA

Há pouco, durante aula em uma turma do Ensino Médio na cidade de Ourilândia do Norte no Sul do Pará, introduzi o tema da Shoah. Na ocasião, em meio aos debates, um aluno se manifestou destacando que a posição apresentada por mim ia de encontro a outras fontes de conhecimento; a saber, no caso em questão, uma página da internet a qual ele teria acesso – Metapedia –, que deslocava a temática em tela para uma outra linha interpretativa. Ou seja, de que haveria exageros no que tange aos dados sobre a Shoah e quanto ao papel dos nazistas no genocídio.

Diante do apresentado – e ao verificar as informações e perceber que a fala do meu aluno possuía respaldo; ou seja, o site realmente existia –, um conjunto de questões me vieram à cabeça: primeiro, como a assim chamada História do Tempo Presente nos coloco face-a-face com um campo metodológico que se propõe a dar a história novos caminhos e abordagens para os problemas do nosso tempo, que faz referência a uma espécie de passado que é atual ou que se atualiza (DELGADO; FERREIRA, 2013). 

Em segundo lugar, e em consonância com minhas inquietações que nascem da experiência do “chão de sala”, minha análise sobre a negação da Shoah – interpelação colocada em sala de aula – me pôs a refletir sobre os desafios e caminhos para a abordagem de temáticas referentes aos traumas coletivos, que à luz de experiências locais dos alunos, podem ser trabalhadas a partir de referenciais caros a todos os indivíduos, como, por exemplo, os Direitos Humanos.

O meio digital é um dos caminhos mais utilizados para essas narrativas “alternativas”, entre elas, a que este artigo se atentará, está nos usos que grupos de extrema-direita com inclinações ao fascismo têm feito a partir da criação de blogs, portais, canais do Youtube ou uma gama de outros espaços virtuais, com propostas diversas que vão de organizar eventos, difundir mensagens, e até promover uma educação histórica baseada em narrativas negacionistas, com a pretensão de serem verdades. A narrativa proposta pelo estudante em minha sala de aula tem relação estreita com a sugestão desses grupos de extrema-direita e o seu alcance aos mais distantes e diversos espaços.

Esta é uma demanda da História do Tempo Presente, que auxilia na condição de formar indivíduos que tenham a habilidade de estranhar sua própria sociedade e sua condição nela, tendo a capacidade de tornar legível o seu próprio tempo, criando historicidade para os problemas e os acontecimentos e levando a problematização destes eventos. Assim, construindo análises sobre eles, tirando deles a ideia de algo já estabelecido, como uma construção natural e através de uma teoria crítica que se fundamente na condição do estranhamento, para a própria situação do investigador mediante seu objeto, o seu cotidiano, sendo capaz de pensar sobre suas implicações e desdobramentos, perante a sociedade (SCHURSTER, 2016, p. 19).

Ao observar as novas demandas que o ensino digital trouxe, incluindo a questão da história digital, que tem em seu enredo os revisionismos negacionista, retorno à minha sala de aula e o site Metapédia que serviu de fonte para o aluno, a narrativa proposta pelo site retira a “industrialização para a morte” promovida pelo Regime Nazista, o genocídio, o sofrimento nos campos de concentração, culpando as doenças, a infraestrutura danificada pela guerra e os ataques dos Aliados à Alemanha, e justificando a falta dessa construção na narrativa histórica oficial por ser parte de uma “propaganda” em favor dos sionistas que o site e seus criadores buscam combater (SILVA, 2017, p. 52-54).

Esta narrativa – destacam-se entre os principais autores Negacionistas Maurice Bardèche (1907-1998), Paul Rassinier (1906-1967) e Robert Faurisson –, insere-se em um debate que não envolve apenas o uso dos meios digitais, mas nele encontra muita força, adeptos e divulgações; a campanha de revisionismo negacionista e essa proposta de Educação histórica atingem diversas outras temáticas, como a fala do presidente Jair Bolsonaro que disse não ter dúvida que o “nazismo” foi de esquerda (SILVA, 2017, p. 18-19).

Diante dos fenômenos negacionistas e “revisionistas”, daqueles que Yosef Yerushalmi e, depois dele, Pierre Vidal-Naquet chamaram de “assassinos da memória”, encontram-se alguns princípios: como a inexistência de câmaras de gás, genocídio que aparece como fruto da propaganda Aliada (VIDAL-NAQUET, 1988, p. 37-41).

A Shoah compreendida como um dos maiores traumas coletivos do século XX, evento-limite marcado por um esforço estrutural, burocrática e institucionalmente construído por um processo de extermínio de um povo, denotando um ódio ao outro, a negação da Alteridade, marcado pela morte de mais de seis milhões de judeus, comprovado historicamente, por um processo de desumanização: “humilhando, oprimindo, retirando a intimidade, a individualidade, nomes, personalidades, conexões familiares, reduzidas a seres caminhantes para a morte” (BAUER, 2013, p. 31).

Como destaca Tzvetan Todorov: "as atrocidades do passado não são esquecidas, mas forma agora a matéria de uma reflexão comunicável” (TODOROV, 1995, p. 286). Acrescentando às palavras de Todorov uma reflexão não apenas comunicável, mas também possível de ensinar-se, de desenvolver-se de criticar-se. É uma das temáticas que envolvem o Ensino de História de Traumas Coletivos, que em tempos de internet segue sendo ameaçado por discursos, narrativas e propostas destes revisionismos negacionistas.

Diante disto, problematizar a forma como o Ensino de História no Tempo Presente tem abordado os eventos traumáticos é essencial, o argumento baseado em uma fonte negacionista utilizado pelo aluno no instante da exposição sobre a Shoah é um sintoma da urgência deste debate. Os desafios que se apresentam são diversificados, envolvem o currículo, os livros didáticos e tantas vezes a carga horária que de tão curta não oferece condições para o aprofundamento destas temáticas e que se no “chão da sala” não puderem ser trabalhados com profundidade, abre espaços para essas narrativas negacionistas, não obstante, compreender dentro dessa temática, as estruturas que dentro da sociedade permitiram a permanência de condições para a repetição desses eventos é fundamental.

Nesse sentido, a Shoah com sua condição de refletir sobre a condição humana é ímpar, no que diz respeito ao que os seres humanos foram capazes de fazer e o que ainda são capazes o tornando universal, mesmo que não se deixe de destacar as suas singularidades. Dessa feita, se busca na escola e no Ensino de História, ao se repetir uma expressão de Anísio Teixeira, e nas suas falhas e omissões, possibilidades de continuidade e ressurgência do ódio em seus diversos âmbitos, como racial, de gênero, de classe, de grupo e todos que sejam identificados como um “outro”, atribuído por Peter gay na sua obra O cultivo do ódio como o “outro conveniente” (GAY apud SILVA; SCHURSTER, 2016, p. 753). 

Esse outro conveniente, atribuído como “inimigo objetivo” pelo regime ao ódio das massas, que é uma escolha especifica de cada regime, em cada sociedade, tendo como traço comum e muito marcante em comum a negação de qualquer alteridade, qualquer um pode ser apontado ao ódio popular e a ação repressiva do Estado, como foram os judeus na Alemanha, ou ainda, maçons em Portugal e na Espanha. Qualquer um que, por infelicidade, se encaixe nas condições de “contra tipo” está em condições de tornar-se vítima (SILVA; MEDEIROS; VIANA; 2014). Assim, a negação da alteridade tem diversos exemplos contemporâneos que tem se multiplicados nos últimos anos: contra negros, mulheres, gays, ciganos, nacionais emigrados ou em busca de refúgio político e econômico (SILVA; SCHURSTER, 2016, p. 753).

Então, o papel da escola e da educação em todas as suas fases, como aponta Adorno, que pauta seu estudo a partir de uma premissa: a de que Auschwitz não se repita, pois, toda a barbárie se opõe à educação, apesar de o barbarismo estar no princípio da civilização. Além disso, é necessário ter clareza quanto aos mecanismos capazes de tornar as pessoas genocidas, esclarecê-las e à sociedade em geral sobre esses mecanismos, para despertar a consciência de todos e impedir que funcionem novamente (ADORNO, 1995). 

Não obstante, defende-se que a metodologia para temas que envolvam eventos traumáticos devam ser abordados à luz das experiências locais dos alunos, que pode ajudar no entendimento de questões caras a todos os indivíduos, como os Direitos Humanos; e ao partir dessas reflexões particulares, se possa construir uma comunidade de sentido que permita compreender como esses eventos se desenvolveram e assim focar em uma cidadania que leve em conta a importância da democracia e da convivência plural baseada no valor da alteridade, contrariando as ações do Estado ou da sociedade que excluam as pessoas consideras diferentes (GARRIDO VILARIÑO, 2020, p. 50). 

Ademais, no meu local de fala, a negação da alteridade ou este “outro conveniente” é claramente o indígena; há muito na história do Brasil visto como párea, aqui encontra diversos recursos que negam a sua existência, sua cultura, sua cosmovisão que pode ser bem definida na frase de Arnaldo Kaba, cacique geral do povo Munduruku: “Desenvolvimento para nós é água limpa e floresta protegida”. O contra tipo que o indígena representa é por mim percebido em diversas dimensões, ao caminhar pela cidade, os olhares direcionados com estranheza aos indígenas ou para além dessa dimensão subjetiva nas reproduções de discursos de ódio dentro das salas de aulas, onde já pude ouvir uma frase que muito me marcou: “O Indígena Não Trabalha”, a referência que logo fiz, cara a esse tema, é a frase que está no portão de Auschwitz: “Arbeit macht frei” que tem como tradução literal “ O Trabalho Liberta”. As implicações aqui são claras e por isso me foi tão significativa. Voltemos à sala de aula.

Portanto, ao usar os indígenas como exemplo quis demonstrar como o Estado Brasileiro pratica um processo de exclusão do indígena que pode ser observada no âmbito do próprio Estado, como exemplo destaquei o fim de 2015, quando o Ministério Público Federal (MPF) propôs à Justiça Federal uma ação civil pública em que pede o reconhecimento, pelo Poder Judiciário, de que Belo Monte representa uma “ação etnocida contra os povos indígenas” que foram afetados pela obra, acusando, como perpetradores desta ação, o governo brasileiro e a empresa Norte Energia S.A, concessionária da usina hidrelétrica que ao fazer a obra promoveu danos, mesmo quando eram previstos aos povos indígenas (RODRIGUES, 2018, p. 30).

Destarte, quis apresentar o fato de que o conceito de etnocídio está ligado à destruição de uma cultura, mas o conceito de genocídio que tem como ligação em sua origem o que ocorreu com os judeus na Shoah, pode ser adequado para o que ocorre com os indígenas neste país, e não obstante, na região do Sul do Pará, por não se tratar apenas da destruição de uma cultura que é um resultado, todavia porque o Genocídio está ligado a um processo.

Dada está definição, trouxe para a discussão desse conceito dois aspectos centrais: 1: o genocídio é a destruição parcial de um grupo nacional – sua peculiaridade reside na proposição da destruição de um grupo, não só os indivíduos que o confrontam, seu objetivo último está na destruição da identidade do grupo, impondo a identidade do opressor; 2: que o genocídio se propõe a destruição da identidade de um povo, não só dos corpos que são imediatamente aniquilados – e que esse processo de destruição se vincula com políticas de opressão, em que tanto a transformação da identidade de um povo se leva a cabo com o objetivo de oprimi-lo (FEIERSTEIN, 2016, p. 250-251).

Nesse sentido, essa é uma possibilidade e um exemplo aproximado que encontrei como alternativa ante a ausência de ferramentas metodológicas e didáticas para lecionar os temas de traumas coletivos na região do Sul do Pará. Porquanto, poderá promover uma reflexão sobre os Direitos humanos e suas características como a universalidade, indivisibilidade, interdependência e imprescritibilidade compreendendo uma formação cidadã que possa refletir os direitos e deveres do Estado, os aspectos ligados a diversidade, fazendo a relação com os traumas coletivos como a Shoah, permitindo a problematização de elementos que permanecem na nossa sociedade atual como são tratados os ameríndios (ainda mais em tempos de pandemia), exemplo caro ao lugar de fala deste autor.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADORNO, Theodor. W. Educação e Emancipação. IN: Educação após Auschwitz. Trad. Wolgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terro, 1995.

BAUER, Yehuda. Reflexiones sobre el holocausto. Jerusalén: E. D. Z. NativEdiciones, 2013.

DELGADO, Lucilia de Almeida Neves; FERREIRA, Marieta de Moraes. História do tempo presente e ensino de História. Revista História Hoje, v. 2, nº 4, p. 19-34 - 2013

BITTENCOURT, Circe. 2008. Ensino de história: fundamentos e métodos. 2ª ed., São Paulo, Cortez, 408 p.

FEIERSTEIN, D. El concepto de genocidio y la “destrucción parcial de los grupos nacionales” Algunas reflexiones sobre las consecuencias del derecho penalen la política internacional y en los procesos de memoria. Revista Mexicana de Ciencias Políticas y Sociales y Universidad Nacional Autónoma de México Nueva Época, Año LXI, núm. 228. septiembre-diciembre de 2016. pp. 247-266. ISSN-0185-1918

GARRIDO VILARIÑO, Xoán Manuel (2020). «Os nazis non eran monstros»: metodoloxía de ensino do Holocausto». Revista Galega de Educación, (76), pp. 58-60. ISSN: 1132-8932

PALMQUIST, H. Questões sobre genocídio e etnocídio indígena: a persistência da destruição. Belém, PA, 2018. Dissertação de Mestrado em Antropologia, da Universidade Federal do Pará, 2018.

SCHURSTER, K; SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. A historiografia dos traumas coletivos e o Holocausto: desafios para o ensino da história do tempo presente Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, v. 42, n. 2, p. 744-772, maio-ago. 2016.

SCHURSTER, K. O fenômeno nazi e o impacto na historiografia do tempo presente. 1ª edição, novembro de 2016.

SILVA, Francisco Carlos Teixeira da; MEDEIROS, Sabrina; VIANNA, Alexander Martins. Enciclopédia de Guerras e Revoluções: 1919-1945 – A Época dos fascismos, das ditaduras e da Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro; ELSEVIER, 2014 vol III.

SILVA, Diego Leonardo Santana. Sobre o Negacionismo no Ciberespaço: A “Enciclopédia Alternativa” Metapedia e sua proposta de Educação Histórica. São Cristóvão, SE, 2017. 1 Dissertação de Mestrado em Educação - Departamento de História, Universidade Federal de Sergipe, 2017.

TODOROV, Tzvetan. Em face do extremo. Trad. Egon de Oliveira Rangel e Enid Abreu Dobránszky. Campinas – SP: Papirus, 1995. (Coleção Travessia do Século).

VIDAL-NAQUET, Pierre. Os assassinos da memória: um Eichmann de papel e outros ensaios sobre o revisionismo. Tradução Maria Appenzeller. Campinas: Editora Papirus, 1988.

Comentários

  1. Excelente trabalho. De fato os desafios da "pedagogia do ensino dos traumas coletivos" são imensos. Ensinar aquilo que é "distante" das experiências locais dos alunos adequando às demandas sociais de nosso tempo presente engrandecem ainda mais esse desafio. Desta forma,qual sua análise sobre o currículo e os instrumentos pedagógicos disponíveis no Brasil para o ensino, na educação básica, sobre traumas coletivos?
    (Sebastiana Valéria dos Santos Moraes)

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  2. Boa tarde, Sebastiana Valéria dos Santos Moraes. Agradeço seu comentário. Penso que desde o início deste século há um crescimento na atenção as práticas pedagógicas desses traumas coletivos, um bom exemplo seria o Holocausto que passou a ser um tema da BNCC e não apenas uma "nota de rodapé" no conteúdo da Segunda Guerra Mundial. Destarte, minhas pesquisas e produções tentam contribuir nessa área.

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  3. Bom dia,
    Parabéns! Percebo a importância de sua pesquisa sobre os traumas coletivos, quando relata sobre as informações dispostas na Internet e as distorções de análise. Por meio das fontes apresentadas o que pretende desenvolver para os alunos?
    Gostaria que comentasse um pouco mais sobre as possibilidades desse trabalho em moldes regionais se possível, isto é, usando os traumas coletivos.
    Aline Barros

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  4. Muito interessante sua pesquisa, caro Alisson. Pensando na crescente "democratização do conhecimento", principalmente por via digital que tem alcançado um maior número de alunos a cada ano, como você vê, mediante a sua pesquisa e as suas experiências, esse alcance de informações pelos alunos? Porque as FakeNews, e nesse caso em específico o revisionismo histórico, tem alcançado grande parcela dos discentes que confrontam as aulas de História cotidianamente por essas informações.

    Policleiton Rodrigues Cardoso.

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