APRENDIZADOS ARTÍSTICO-CULTURAIS NA PERIFERIA: REFLEXÕES A PARTIR DE UMA EXPERIÊNCIA
Josiclei de Souza SANTOS
O presente trabalho faz uma reflexão sobre os agenciamentos de grupos artísticos enquanto territórios de educação não-formal periféricos. O objetivo é refletir como esses diferentes agenciamentos influenciam de forma diferenciada na formação das identificações no espaço periférico. O bairro escolhido para a pesquisa foi a Marambaia. No mesmo, foi preciso pensar a identidade no plural, enquanto identificações, pois os sujeitos pesquisados, embora tenham em comum a arte e a cultura, possuíam e possuem laços de identificação com diferentes construções identitárias: homoafetiva, afrodescendente, feminista, dentre outras, criando assim um território atravessado por múltiplas vozes e agências, em um contínuo processo de rizoma. Essas identificações se constroem a partir da educação menor, menor porque surgida no seio de grupos e indivíduos minoritários, cujas opressões trazem consigo também a possibilidade de linhas de fuga enquanto devires que questionam os mecanismos de controle da realidade, gerando um território afetivo e identificatório entre seus envolvidos. A metodologia de pesquisa utilizada deu-se pelo enfoque na análise documental e na memória, a partir do olhar dos diferentes participantes sobre experiências, artistas, público, oficineiros, produtores, colaboradores, etc, através de entrevistas com roteiro de perguntas abertas, análise de documentos, dentre outros, se configurando como uma possibilidade de conhecer as representações discursivas sobre tais experiências no passado, cotejando-as com as do presente, tentando perceber assim a significação das mesmas enquanto experiências educativas formadoras e transformadoras dos sujeitos e de sua relação com sua realidade nos últimos 30 anos. Isto possibilita traçar um esboço do agenciamento coletivo presente nessas práticas educativas. Os referenciais teóricos adotados nesta pesquisa foram Gohn, para os estudos do conceito de educação não-formal, Gallo para o conceito de educação menor, e por último, Deleuze para o conceito de território e rizoma.
Neste estudo busca-se analisar a experiência de educação não-formal artístico-cultural na Marambaia, bairro localizado na periferia de Belém, próximo ao limite com o município de Ananindeua, com um histórico de atividades artístico-culturais em diferentes linguagens, desde o período da redemocratização do país.
Para propor um aprofundamento no olhar sobre o locus da pesquisa, optou-se pelo estudo de caso, bem como pelo estudo da memória. Adotar o primeiro método representa o desejo de adentrar em uma realidade social, buscando descrever e interpretar as relações interpessoais e as relações de poder que as balizam, percebendo como as mesmas no processo educativo são geradoras de significação sobre a mesma realidade. Nesse sentido, foram realizadas visitas ao Centro Comunitário Tiradentes, espaço de educação não-formal, relacionado à cultura e à arte no bairro. Quanto ao segundo método, o objetivo foi investigar como a memória alimenta as representações do bairro da Marambaia como comunidade de arte de resistência periférica, e deu-se por meio de entrevistas realizadas com os sujeitos envolvidos no escopo da pesquisa: artistas, membros da comunidade, produtores culturais, dentre outros.
De acordo com Gohn (2006), umas das tarefas da educação não-formal é educar para a cidadania, sendo esta alicerçada nos direitos humanos, sociais, políticos, culturais, etc. Outra marca da educação não-formal diz respeito às relações, cujas dinâmicas têm como motor a intencionalidade e a associação voluntária com finalidades específicas, que conseguem desenvolver a dimensão dialógica.
Na educação não-formal, a função de educadores e de educandos não é estratificada, havendo um revezamento de posições entre os sujeitos, e um ambiente sem a carga disciplinadora de que fala Foucault (1987, p. 167). Assim, se torna possível realizar de maneira mais efetiva a relação que Freire aponta como necessária para uma educação para a autonomia, que é todos se sentirem sujeitos do ato cognoscente (FREIRE, 1997, p. 12).
A educação não-formal no campo da arte e da cultura é uma prática educativa que se configura como um elemento importante na formação da identidade e na construção da representação dos sujeitos ante a realidade da periferia. No caso das experiências de educação não-formal na Marambaia, os sujeitos envolvidos, embora tendo em comum a arte e a cultura, possuíam laços de identificação com diferentes construções identificatórias, homoafetiva, afrodescendente, feminista, dentre outras, criando assim um território atravessado por múltiplas vozes e agências, em um contínuo processo de rizoma. Essas identidades se constroem a partir daquilo que Gallo, adaptando um termo deleuziano-guatarriano, chama educação menor, menor porque surgida no seio de grupos e indivíduos minoritários, cujas dores trazem consigo também a possibilidade de linhas de fuga enquanto devires que sempre questionam os mecanismos de controle da realidade (GALLO, 2008, p. 66), menor também porque surgido do agenciamento dos minoritários, menor porque se diferenciou de uma educação maior serializada e totalizadora, forjada na macropolítica do Estado controlador, em nome da busca de relações rizomáticas de interações diferenciais e produtivas, se configurando como linhas de fuga (GALLO, 2008, p. 67).
Nesse ensino não-formal, a manutenção do mesmo se dá por uma intencionalidade, uma busca voluntária a partir de interesses comuns, estabelecendo relações ensino e aprendizagem cuja dinâmica são relações de igualdade e solidariedade, com vias a intervir na realidade cotidiana, almejando uma cidadania baseada no respeito às diferenças, como diz Gohn ser comum à educação não-formal (GOHN, 2005, p. 03).
O interesse em pesquisar as experiências de educação não-formal no campo da arte e da cultura no referido bairro surgiu pelo fato de nos últimos quase trinta anos o mesmo ter sido um referencial em ações artístico-culturais educativas junto à comunidade por parte de seus criadores e produtores artístico-culturais, além de ter projetado muitos artistas no cenário artístico do estado e até fora do Pará. As trocas de experiências, leituras, visões de mundo, a criação de obras, aliadas à militância política de alguns, aos poucos resultaram em apresentações artístico-culturais em espaços públicos e atividades arte-educativas que envolviam a comunidade. As atividades não se deram de forma ininterrupta nessas três décadas, sendo marcadas pela mudança dos atores sociais e por momentos de fluxo e refluxo. No entanto, a dinâmica de reflexão crítica sobre o fazer artístico, socialização não autoritária, e de envolvimento dos produtores e criadores artísticos com a comunidade manteve-se, formando assim gerações de apreciadores de arte e cultura e de criadores artísticos. Ao mesmo tempo, houve a aproximação dos protagonistas das ações de educação não-formal em diferentes períodos, criando assim uma rede de colaboradores, com laços de identificação, que consistem hoje em um agenciamento que tem como ponto unificador a existência de um território de resistência periférico da arte e da cultura em Belém. Assim, a visão da cultura como um elemento hierarquizador social é substituída pela que a vê como um processo interacionista, com um grau de viscosidade capaz de sempre colocá-la em movimento (BAUMAN, 1998, p. 89).
Uma das primeiras grandes manifestações desse processo de educação não formal foi a criação do grupo Galrar Cultural, ainda no final da década de oitenta, que teve como primeira manifestação pública a mostra artístico-cultural O Abominável Tancredo das Neves, em 1987, com uma exposição de charges, esculturas, apresentações poéticas e de teatro e música na praça Tancredo Neves, localizada na gleba II da Nova Marambaia. Esse caráter formador a um só tempo da cidadania e da formação artística, geradora de um processo idenficatório criador de um território afetivo está presente no depoimento dos entrevistados. Vejamos afirmações de dois participantes do Galrar Cultural: “A vivência na Marambaia foi fundamental para despertar o meu ‘eu’ cidadão, profissional, político, social e fundamentalmente, cultural. A Marambaia, como diz o Gilberto Gil, ‘me deu a régua e o compasso’”, (Thomé Azevedo, ator, produtor e realizador audiovisual hoje residente em Macapá). A fala de Thomé Azevedo evidencia que há vasos comunicantes entre o campo político e cultural e que ambos se ligam à cidadania. Pela citação de uma canção Gilberto Gil final de seu relato, é possível se notar um paralelo entre a origem baiana do músico e a origem marambaiana de Azevedo, o que relaciona a sua formação ao seu laço identificatório de pertencimento. O segundo depoimento é o do cartunista Ronaldo Rony,
Sempre que tenho que falar sobre minha formação artística e humana, faço questão de citar essa parte da minha vida. Sinto orgulho disso. Digo que sou um produto dessa Marambaia mágica, fomentadora de tantos artistas que hoje seguem seus caminhos e se afirmam em suas artes, como eu, no cartum; Chico Weyl e Márcio Barradas, no cinema; Buscapé Blues e Mauro Vaz, na música; e Cuité nas artes plásticas e na arte de sobreviver. Isso pra citar só alguns. Sou grato à vida por ter me colocado nesse ambiente e me dado oportunidade de conhecer as pessoas que estiveram comigo nessa tentativa, que acredito bem-sucedida, de se fazer arte.
Nota-se, portanto, no discurso dos dois produtores culturais a presença da formação cultural cidadã e o laço identificatório com o bairro como um elemento comum. No início da década seguinte surge o Moculma (Movimento Cultural da Marambaia), reunião de jovens artistas já influenciados pela convivência com os criadores do Galrar Cultural, juntamente com outros jovens ligados ao movimento popular. Esse movimento foi atuante no bairro durante vinte anos. Dentre algumas atividades que se destacaram estão, por exemplo, mostras de cinema e oficina de cineclubismo, programações anuais de ocupação artística das praças, envolvendo diversas linguagens artísticas, como o Arte Praça, a Sexta poética, a Pitada de arte, com atividades que envolvem oficinas de música, teatro, literatura, dentre outras linguagens, em parcerias com ONG’s, como a Rádio Margarida. Em 2010, surgiu o Boi Vagalume, de janeiro a junho mobilizando a comunidade com oficinas diversas para jovens da comunidade, preparatórias principalmente para o carnaval e as festas juninas, como mostram as ilustrações abaixo.
Tais iniciativas são de grande relevância se for observado que as políticas públicas no estado para a formação de artistas e público, e para o apoio a atividades dessa natureza são muito poucas, e muitas vezes localizadas apenas no centro da capital, sendo, portanto, a situação ainda mais grave quando pensamos em políticas de arte e cultura nas periferias das cidades, tanto na capital quanto no chamado interior. Isso devido a uma concepção hierarquizante de arte e cultura que privilegia os espaços do centro das cidades, deixando os bairros periféricos apenas com a imagem negativa de áreas marcadas pela violência e pela falta de infraestrutura, não oferecendo assim um contexto propício para o desenvolvimento de artístico, e, portanto, para o consumo da arte.
A constatação dessa longa situação de descaso para com o direito de acesso à cultura por parte do Estado pode ser percebida por uma política de cultura no estado que segue um modelo hierarquizador de cultura na SECULT, que não as periferias de forma efetiva, tornando em nível estadual impossível uma política pública voltada ao apoio e principalmente ao fomento da arte e da cultura junto à maioria da população, que hoje se vê privada do direito de acesso à arte aos bens culturais produzidos pelos artistas, havendo um grande déficit de teatros, galerias, cinemas, anfiteatros, dentre outros, para a grande população das periferias de Belém e do restante do estado. Essa situação já era percebida na década de oitenta pelos artistas da Marambaia, é o que lembra Ronaldo Rony, um dos entrevistados,
Nessa época do Galrar, o Ribalta expandiu sua atuação teatral e focou nas artes visuais. Foi inaugurada uma galeria de arte, a Kabuki, na casa de um dos participantes do grupo. Isso foi um ato de rebeldia, creio eu, já que as galerias tradicionais de Belém estavam fechadas para nós, da periferia. Colocamos em prática o seguinte pensamento: se as galerias estão fechadas, vamos criar as nossas. Nas nossas casas, nas ruas, nas calçadas, nas esquinas. Acho isso bem marcante como o sentido da arte que sai quebrando barreiras.
A preocupação de ser criar um grupo de discussão e planejamento de ações culturais no bairro já aponta para uma transformação no olhar sobre a estratégia de atuação para a intervenção social e a formação crítica da comunidade. Pois juntamente com a necessidade de se organizar nos centros comunitários, esses sujeitos acreditavam que era preciso criar espaços públicos para a fruição da arte como forma de se contrapor ao que Félix Guattari chamou de criação de subjetividades laminadas em série, com a função de repetir os discursos majoritários
Um exemplo de tentativa de criar novos espaços públicos de intervenção artística foi a ocupação artística do mercado da Marambaia, em que a divisão hierárquica entre a produção artística, muitas vezes consumida apenas por um nicho social, e a atividade do trabalho cotidiano popular, representada pelos vendedores de hortifrutigranjeiros, é rasurada. Desse modo o alimento do corpo e do espírito se entrelaçaram em uma horizontalidade em que o artista se integra ao antigo ritual cotidiano das comunidades de ir à feira.
O rompimento da divisão territorial entre os espaços de fruição estética e os espaços cotidianos se inscreve numa micropolítica da subjetividade que busca revolucionar o cotidiano e as relações interpessoais, gerando, assim, semióticas processuais criativas (GUATTARI, 2008, p. 46). Tais semióticas processuais criativas, segundo Guattari, inerentes à própria dinâmica libertária da arte, se refletiram, por exemplo, na própria estrutura organizacional do MOCULMA, baseada na horizontalidade e no respeito às diferentes orientações políticas de seus membros, o que lhe deu uma dinâmica agregadora.
Essa preocupação agregadora do movimento foi fundamental para o trabalho com diferentes grupos a para a aproximação de diferentes sujeitos. Hoje o MOCULMA já não existe como movimento organizado, mas sua experiência se desdobrou em outros projetos hoje presentes na Marambaia, como os já citados Boi Vagalume e o também já citado projeto de ocupação cultural da feira da Marambaia. Atualmente esses projetos contam com a colaboração de sujeitos atuantes na produção cultural do bairro e de outros atores que, apesar de não mais residirem no mesmo, são colaboradores.
Se observarmos que a construção do saber não está desvinculada das relações de poder e das significações construídas em seu processo, será percebido que a mesma é fruto de buscas afirmativas de discursos de diferentes grupos na sociedade, em que significados são constantemente negociados, estando, portanto, os processos formativos para além dos conteúdos ensinados. Portanto, seja no espaço formal de educação, a escola, seja em espaços não-formais de educação, como foram e são as experiências descritas neste trabalho, o que está em jogo são diversos projetos criadores de representações da realidade que servem ou para referendá-la ou questioná-la.
REFERÊNCIAS
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro. 8º ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
BAUMAN, Zygmunt. Ensaios sobre o conceito de cultura. Rio de Janeiro Jorge Zahar, 1998.
CHIZZOTTI, Antônio. Pesquisa em ciências humanas e sociais. 3 ed. São Paulo: Cortez. 1998 (Biblioteca da educação. Série, 1. V.16)
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. v.1 - 5. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997.
FREIRE. Paulo, Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 6 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1997.
GALLO, Sílvio. Deleuze e a educação. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
GOHN, M. G. Educação não-formal e cultura política. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2005.
GUATTARI, Félix. As três ecologias. Tradução Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas: Papirus,2001.
SILVA, Tomaz Tadeu. Documento e identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
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